O pescador acidental

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atsimoes
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O pescador acidental

Mensagem por atsimoes »

O Pescador Acidental
O imenso areal a descoberto pela última hora da vazante revelava uma única certeza. As minhas botas que se afundavam superficialmente enquanto a areia fina engrossava e o tapete se tornava duro como uma estrada de alcatrão negra e sem fundo á medida que avançava em direcção ao mar que lá ao longe servia de fronteira á desolação daquele lugar. Apenas sombras e silêncios daquelas horas desoladas de vida onde até os caranguejos verdes de casca dura evitavam aquele lugar porque já nada restava para se poderem alimentar. Esta era a certeza daquele lugar. Um deserto sem vida cujos sedimentos formavam uma capa lisa, acinzentada, rodeada por finos rebordos amarelos de espuma que ao longe a maré vazia trazia de quando em vez antes que o período lunar terminasse a ronda daquele lugarejo abandonado e inóspito para a vida marinha e rejeitado por todos aqueles que nele sedimentaram a culpa e inocência das suas vidas passadas…
Não estava só. Observei o homem que coxeava ligeiramente do lado esquerdo da bota que fendia a areia ainda húmida, formando pequenas estrias em desenhos geométricos perfeitos em compasso alinhado ao longo do areal. Via-o nitidamente sentado sempre no mesmo lugar. Uma pequena ilha, da forma de um cogumelo, ou anémona, rodeada de altas laminárias pendendo como tentáculos de um polvo gigante adormecido. Estava de costas voltada ao mar, porque o pescador de robalos, acendia agora um cigarro cuja pequena incandescência que fendia os seus lábios, revelava a sua posição. Este era o seu lugar, o seu mundo onde colocava a cana e as amostras cuidadosamente sobre o manto de algas e ali ficava adormecido na contemplação da sua vida passada e presente. A pesca era o pretexto dos seus passeios nocturnos e os peixes e crustáceos das pequenas poças circundantes se existissem ainda, estavam habituados á sua presença. Atravessei o deserto na sua direcção. De facto a pesca era o pretexto de ambos. Uma cana e um par de botas não podiam levantar a mínima suspeita porque ambos estes pescadores de robalos se refugiavam naquele lugar da baixa-mar. Alguns botes alumiavam a ténue sombra da linha de água e estas noites abafadas do estio prolongado, chocavam com o fresco da humidade que pingava das rochas e saliências e feriam como esferas de chumbo a estagnação das poças do mar em silencio. Coloquei a minha cana ao lado da dele, retirei o colete das amostras e bebi um gole de agua fresca, enquanto o nosso homem de costas voltadas para o mar, sorvia o seu cigarro, em longas puxadas de aspiração e contemplativo olhava o céu com algumas estrelas, porque viajava com elas, agora e estava possivelmente do outro lado do mundo aonde tinha estado também.
Quer agua fresca Sr. Robert? A noite vai quente e só na viragem da maré é que teremos a primeira brisa fresca vinda do norte antes do amanhecer..; “ Obrigado António, obrigado, mas não tenho sede, apenas estou bem, por aqui. - Já fizestes alguns lançamentos?? << Ou também já não acreditas?’>> Fez-se uma pausa, e o pescador de robalos colocou as mãos cruzadas por debaixo da nuca sobre o manto das algas frescas e estendido deixou de fumar e deixou-se estar calado como sempre o foi desde que aquilo tudo aconteceu… Ainda se lembrava dela concerteza, era uma senhora muito bonita ,pequenas sardas numa face rosada , limpa e clara , própria de gente do Norte, usava uns óculos escuros e lenço cor de rosa sobre a cabeça que se fechava delicadamente com um nó por debaixo do frágil pescoço, protegendo-a do sol inclemente de um dia de verão.
Os anos tinham passado e Mr. Robert, á mesma hora, na mesma data, no mesmo local, ali ficava contemplativo olhando o horizonte, esperando o regresso dela, que o mar lhe depositasse aquilo que de mais de querido lhe tirou….
-Se ainda acredito…!?? (Robert, sempre me tentava apanhar nas malhas da sua descrença..) - O sentimento de perca é atroz; penso que perdi algo também, todos nós já perdemos, não acha, que perder é ganhar ou a indiferença da perca é comum e torna-nos insensíveis perante o sofrimento dos outros, Mr. Robert? Não tenho as suas capacidades filosóficas e profundas razões para tentar compreender….;- És agnóstico, António??Se.. . Sou…“”|Sim, acredito que sim, mas e o dom, Mr. Robert, ? Não é uma dávida de Deus?
- Não, António, o dom nasce, é cognitivo, o da sensibilidade e criatividade, o resto é trabalho..( O pescador de robalos era um famoso psicanalista reformado pelas melhores Universidades do Mundo)..apenas trabalho. Achas que és melhor do que os outros, quando pescavas robalos?? Não..trabalhaste muito , arduamente , para aprenderes, eu..continuo a aprender…contigo!!! Sabes que sou um pescador acidental desde que te conheci, ..Lembras-te, daquele dia, no dia comemorativo, dela.. quando corricavas ao pôr-do-sol perto de mim??- Sim , lembro-me perfeitamente, era muito bonita a sua esposa, lamento tanto, apenas pode recuperar o seu lenço.. , cor de rosa…
O silêncio de ambos era o amor da vida e das vidas que recuperávamos sempre que o pequeno ilhéu se formava nos dias de verão. Os robalos e a pesca eram o pretexto para as nossas conversas sobre Deus, o mundo, as feridas, a dor, o sentimento de perca e.quando me sentia só percorria o areal inóspito á procura de Mr. Robert e do seu imenso mar interior que brotava das suas palavras enormes do tamanho do mundo que procuro entender…
A brisa levantou-se e a maré interrompeu o nosso monólogo interior. Um pio desconcertado dos maçaricos reais e o voo das primeiras gaivotas em direcção ao mar que rumavam ao som das traineiras que regressavam da faina, acordou-nos, fazendo com que a vida retornasse ao seu ritmo normal. Acidental foi o nosso encontro e na partida, perante o mar deserto que enchia o areal, Robert tinha dificuldade pela idade e pelo ligeiro coxear em sair depressa do lugar. Segurei-lhe o braço e deslizei pelas pequenas ondas que traziam o fresco da madrugada ajudando-o a sair do deserto de areia traiçoeiro, até que me atrevi a fazer-lhe a ultima pergunta…
- Essa ferida na perna..?’ Alguma sequela de acidente ou.. Arfando um pouco, encharcou um lenço com agua fresca e enrolou-o no pescoço , alisando os seus cabelos longos e brancos sob a nuca , dando-lhe um ar de Sir , de outros mundos que não os nossos, onde se caçavam tigres de Bengala em cima de elefantes e era natural e snob o mundo ser assim…Há ..!! Isto..!!! Sorriu ,nas poucas vezes que o vi , desenhar algo , ou um esboço de um sorriso na sua face magra de onde emanavam uns olhos azuis profundos como a cor do mar que enchia o nosso horizonte da manha.Isto..!!Um estúpido acidente de bicicleta em Goa.. Numa curva apertada , choquei de bicicleta contra o único automóvel existente por ali….Acidental de facto Mr. Robert.

Até um dia desses por aí.

António Simões, Leça da Palmeira, 23 Agosto 2009
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romeu32
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Registado: segunda mai 19, 2008 3:39 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por romeu32 »

Mais um texto como como só tu nos sabes deliciar.
Esta muito bonito e nostalgico,mais uma vez.
Parabéns Antonio Simões.
Abraço.
Última edição por romeu32 em segunda ago 24, 2009 3:33 pm, editado 1 vez no total.
atsimoes
Mensagens: 348
Registado: domingo out 22, 2006 10:15 am

Re: O pescador acidental

Mensagem por atsimoes »

Obrigado Miguel. Acho que todos temos um pouco de Mr. Robert, dentro de nós. Afinal escrever não é um dom, como ele afirma. Apenas trabalho, trabalho e sensibilidade.
Certamente que alguns leitores quererão saber como tudo aconteceu. De facto este casal Inglês passava sempre férias por aqui. A senhora expunha-se ao sol sempre numa zona de rocha granitica em forma de bola de queijo erodida pelas frequentes marés de grandes amplitudes ao longo de 350 milhões de anos...Lembrem-se que esta zona que vai desde a Foz velha até a minha zona tem as rochas datadas mais velhas do planeta desde a sua formação. E ..a tragédia aconteceu numa maré viva de Agosto.

Um abraço, espero que tenham gostado ou não. A critica é louvável, não sou nenhum candidato a escritor , apenas escrevo porque gosto e é a minha forma de colaborar com o Sitio.

António
JorgePereira
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Registado: quinta jun 25, 2009 2:46 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por JorgePereira »

Regressado da Foz do Arelho, não podia desejar melhor prenda.
Um texto do António Simões.
Obrigado António.

Jorge Pereira
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Ramiro
Utilizador Regular
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Registado: sexta out 01, 2004 11:00 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por Ramiro »

Mais uma pérola do seu imenso espólio, amigo António.

Obrigado.
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007kil
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Registado: terça dez 12, 2006 5:05 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por 007kil »

Lindo relato, sim senhor como já nos tem habituado.
Parabéns.
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Humbfish
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Registado: domingo mai 08, 2005 6:19 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por Humbfish »

Parabéns Simões por mais essa pérola literária. Fantástico !! =D>

Abraço,
Humberto.
dord
Mensagens: 113
Registado: domingo jul 12, 2009 9:48 pm

Re: O pescador acidental

Mensagem por dord »

É impossível não ficar com um aperto após ler o texto quer pela forma como o descreve quer pela situação em si!

Faz-nos recordar que um dia iremos perder tudo aquilo que construímos e que por tanto lutamos, resta-nos ter a sorte de conhecer-mos os verdadeiros Senhores deste mundo e deixar-nos levar pelas suas experiencias, aventuras, magoas e tirar-mos partido do que de melhor a vida nos proporciona

vamos á pesca! :fixe:

Abraço
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