- E, depois, vínhamos por aí a cima, parando nas casas dos parentes, para lhes oferecermos parte dos barbos e das bogas que apanhávamos. E os parentes retribuíam. Para além de lá petiscarmos, davam-nos chouriços, um bocado de presunto, figos, uma garrafa de aguardente, enfim, o que tivessem disponível. De maneira que aquilo era uma alegria, uma festa. E quando chegávamos a casa a festa era ainda maior. A tua avó e os teus tios e tias, ainda mais pequenos que eu, rodeavam-nos logo para verem o que trazíamos.
Assim falava o meu pai para um miúdo hipnotizado e deslumbrado com aquelas aventuras da pesca, passadas entre vales e serras à beira Zêzere, no concelho da Pampilhosa da Serra, em zonas depois dominadas pela Barragem do Cabril.
- Oh pai e como foi quando o avô Manuel foi apanhado?
- Ficou tudo em águas de bacalhau. Aquilo por lá era tudo primos e primas. O teu avô esteve umas horas no posto e depois soltaram-no. Estivemos uns tempos sem ir ao rio, mas depois, voltou tudo ao mesmo.
- Oh pai e como é que pescavam? Era logo à bomba?
- Não. Primeiro largávamos a rede e, depois, o teu avô ia a nadar até junto das pedras e dos buracos onde sabia que estavam os peixes. E, aí, agitava o embude embrulhado numas varas de trovisco para os peixes saírem e ficarem atordoados. Nos dias em que a pesca dessa maneira não resultava, então é que mandava uma bomba num dos poços do rio. Depois tinha que mergulhar para ir buscar os peixes maiores, pois esses afundavam.
E nas noites de Inverno, sem televisão, regularmente eu pedia ao meu pai que voltasse a contar aquelas aventuras de quando ele ainda era menino, mais o meu avô que já não conheci. E ele lá repetia a história, acrescentando um pormenor aqui, uma descrição mais pormenorizada ali, ao mesmo tempo que os seus olhos se iluminavam com a memória de um tempo duro mas feliz da sua infância. Porém, demasiado curto. Aos 10 anos deixara a serra e os vales, mais a instrução primária incompleta, para iniciar a vida de trabalho numa das tascas de Lisboa.
Eu imaginava os poços do rio, as correntes, os peixes a saltarem e os regressos penosos, serra acima. Mas o que mais me encantava era a festa. O encontro com os parentes, a partilha, as ofertas mútuas. Enfim, um processo de troca, com a parte mercantil sublimada pela alegria dos reencontros, das novas das respectivas famílias, da breve refeição conjunta, dos abraços das despedidas.
Outras vezes, quando o meu pai não estava com disposição para rememorar pescarias, voltava-me para a minha mãe.
- Oh mãe, e quando o avô João ia pesca, como era?
Mais seca, sem o entusiasmo e sem o poder de comunicação e o sentido épico do meu pai, ela lá contava, com parcimónia, as aventuras do meu avô, no litoral da Lourinhã.
- Era de noite. Ele tinha uma lancha a meias com o ti Zé Platino e, quando o mar estava manso, no Verão, saíam para ir à pesca do safio.
- E depois?
- E, depois, como não havia frigoríficos, convidava a irmã, os cunhados e alguns primos para irem lá a casa comerem os safios cozidos, com batatas.
- E era uma festa, mãe?
- Sim, mais ou menos… Era…
- E ia aos polvos, também, como o tio António.
- Não sei. Isso já não me lembro. Vai mas é lavar a cara e os dentes, para ires para cama, que está na hora.
E eu lá ia, sabendo tinha garantidos sonhos com fabulosas pescarias de barbos e bogas, em vales profundos entre montanhas, ou com fantásticas lutas com safios gigantes, no meio do mar calmo, em noites de Agosto.
E estava eu muito entretido da vida com estes pensamentos quando tocaram à porta.
- Olá vizinho, venho trazer-lhe um salpicão e um queijo que me chegaram hoje da terra.
- Oh, D. Prazeres, por amor de Deus, então o que é isso… Bem sabe que não estou à espera de nada.
- Ora essa, então você todas as semanas vai lá acima, ao segundo andar, dar-me peixe e eu não havia de lhe trazer um miminho quando me chega uma encomenda lá terra!?... E olhe que quero-os lá em cima, na sexta à noite, que eu vou assar no forno aqueles sargos que me deu. A D. Manuela e a D. Clara também vão lá estar. E não leve vinho, que a D. Manuela recebeu umas garrafas lá do Alentejo.
Pois é, meus amigos. A pesca pode ser mesmo uma festa.
A Festa da Pesca
Re: A Festa da Pesca
Lindo.
Em meios mais pequenos, ainda funciona um pouco assim.
Em meios mais pequenos, ainda funciona um pouco assim.
Re: A Festa da Pesca
MAis uma bela istória =D> =D>
- Beto_Manja
- Mensagens: 562
- Registado: segunda out 12, 2009 1:21 pm
Re: A Festa da Pesca
Boas,
Muito bom, como não poderia deixar de ser... tem nos habituado bem.
Obrigado pela partilha!
Cumprimentos,
Roberto
Muito bom, como não poderia deixar de ser... tem nos habituado bem.
Obrigado pela partilha!
Cumprimentos,
Roberto
- DCautosport
- Mensagens: 553
- Registado: terça ago 21, 2012 1:53 am
Re: A Festa da Pesca
Muito bom!!!!
Re: A Festa da Pesca
Está porreiro,... faz reviver e voltam memórias
Re: A Festa da Pesca
Bela história.
Uma boa vida de pescador é simplesmente isto.
Cumprimentos.
Uma boa vida de pescador é simplesmente isto.
Cumprimentos.