O meu Némesis...

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O Sítio do Pescador

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"O meu Némesis..."
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jose elvas
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O meu Némesis...

Mensagem por jose elvas »

Pela milésima vez tentei enganá-lo, aquilo já se tinha tornado em algo mais que o simples desejo de capturar um peixe. Não meus amigos, aquilo já era uma obsessão!

Há já 3 anos que tentava capturar aquele Achigã, tão bonito, grande, roliço... no entanto, e ano após ano, ele frustrava os meus intentos. Aquilo tinha-se tornado para mim um ponto de honra, nenhum peixe poderia alguma vez ser mais esperto, paciente e meticuloso que eu. Frustrado, mais uma vez, voltei para casa sentindo um misto de raiva, desânimo, mas, acima de tudo, respeito por aquele magnifico exemplar que teimava em não atribuir a minima importância a todo o meu, longo, arsenal de amostras que eu já lhe tinha feito desfilar em frente ao seu nariz! Não, ali, colado aquele velho tronco, daquele velho Sobreiro já cozido pela agua, na sua pequena charca onde ele era rei e senhor, não tinha nada a temer!

Tinha-o vislumbrado pela primeira vez á já longiquos 3 anos, aquando de uma caçada ás raposas onde eu fui ajudar a bater. Nunca me vou esquecer do momento em que, depois de atravessar um longo campo cheio de xaras, silvados e giestas descobri aquela pequena charca em plena encosta da serra cravada. Como sempre, a agua exerce em mim um inexplicável fascinio que me atrai como um iman atrai o ferro, desloquei-me até as suas margens e pus-me a contemplar a sua beleza. Foi então que pela primeira vez o vi!

Majestosamente parado junto ao seu adorado tronco em pose triunfal e orgulhosa, digna de um rei sentado no seu trono. Imediatamente o meu coração começou a bater em ritmo demasiado acelerado para alguém que já anda nisto á anos, mas que posso eu fazer? A pesca e tudo aquilo que a envolve desperta em mim o meu lado mais primitivo, mais irracional, talvez resquicios dos nossos antepassados que ao verem um peixe não pensavam , “Olha, mais um troféu!”, mas sim “Olha, o jantar de hoje para mim e para a minha familia”.

Gravei na minha mente a localização daquela charca e pensei para comigo próprio, “Em breve nos defrontaremos, e, como todos os outros antes de ti, vais perder!”, tão enganado que eu estava!

Nunca me esquecerei daquela tarde em que, depois de tantas e tantas ocasiões perdidas, pensei que finalmente o tinha vencido, finalmente tinha escalado aquela montanha! Apresentada que estava aquela bonita e roliça minhoca de vinil, o meu Némesis, como eu entretanto lhe tinha começado a chamar, não foi capaz de resistir aos seus encantos e á sua sumptuosidade tendo cometido o pecado capital de a mordiscar. Finalmente! Finalmente após tantas e tantas desilusões o tinha conseguido enganar, agora já não me podia fugir, agora é que ele ia ver, agora é que... ...desferrou-se!

Não existem palavras neste mundo que consigam descrever de forma apropriada aquilo que senti naquele momento, uma tempestade de colera, decepção, tristeza, frustração e desânimo apoderou-se da minha mente. Durante os 6 meses que se seguiram desisti, jurei para nunca mais, finalmente o grande pescador tinha encontrado o seu Némesis que, quando posto á prova, lhe tinha sido superior.

Mas o vicio da pesca é uma coisa terrivel, um bicho malino, rasteiro, traiçoeiro e que quando menos se espera volta-nos a picar com o seu ferrão. Eu tinha que o capturar!!!!!!!!!!

Não o conseguia tirar do meu pensamento e enquanto não lhe pusesse as mãos em cima não mais me poderia considerar pescador. Certo dia de Verão, já bem ao fim da tarde e depois de um daqueles dias em que o calor é tanto que a Lebre não sai da cama, a Raposa mantém-se nas profundezas da terra e o Saca-rabos diz, “Está um calor do C@r@lh#”, decidi tentar novamente. Preparei-me mentalmente ao longo da tarde para a batalha que aí vinha, escolhi os melhores soldados do meu exercito, a grande Tenente que era a minha cana, o fiel Alferes que era o meu carreto e o eficaz Cabo que era a minha amostra, e pus-me novamente a caminho daquela linda charca que se tinha tornado entretanto no campo de batalha da minha desonra, acho que já era capaz de fazer aquele caminho de olhos vendados de tantas vezes que o tinha percorrido.

Assim que lá cheguei senti logo de imediato o compasso de batida do meu coração a aumentar, uma descarga de adrenalina que era impossivel evitar e que me toldava os movimentos, sentei-me á sombra de um medronheiro e fumei um cigarro para me acalmar, espreitei por entre o aglomerado de Bunho, Jarros de agua e Caudas de Raposa que tinha a interpor-se entre mim e a cristalina agua na esperança de ver o meu Némesis no lugar que era seu por direito e que mais nenhum habitante daquela pequena charca se atrevia a lho disputar, aquele velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela água, onde só ele fazia as leis. Imediatamente o vi, impressionante como sempre, majestoso como sempre, venerável como sempre... mas ainda maior e mais gordo do que sempre.

Por momentos fraquejei, pensei se não seria melhor retroceder pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, sem fazer barulho, sorrateiramente, desonrado e derrotado... sacudi a cabeça na ansia de afastar estas ideias que assombravam o meu espirito, enrijeci o pensamento e gritei para mim mesmo, “Tem que ser hoje”! Comecei a avançar lentamente e de cocoras, qual soldado numa qualquer guerra, percorri a distância que nos separava num tempo que me pareceu uma eternidade. Quando finalmente me encontrei a distância de “tiro” abri a asa do carreto, deixei a linha deslizar um pouco pelo meu dedo para sentir o seu contacto, apontei a ponteira ao Astro-Rei e, com toda a, pouca, firmeza que consegui fiz o lançamento!

A amostra saiu a voar direita á sua missão, certeira, precisa, calculada e em perfeita rotação... até que foi embater com grande estrondo nos ramos daquele velho tronco, daquele velho sobreiro, já cozido pela agua, e ficou presa no mesmo... raios e tempestades, maldições e macumbas, desânimo e tristeza, ódio e cólera! Que raio de encantamento era este que parecia proteger o meu Némesis e obstruir todos os meus intentos?

Por momentos gritei mentalmente todos os impropérios de que me lembrei, roguei-lhe todas as maldições que me vieram á memória, imaginei-o numa travessa de barro rodeado de batatas a crepitar perante o calor de um forno, desejei-o em cima de uma grelha sobre a brasa, ansiei-o cortado em postas a fritar num tacho cheio de azeite a ferver...

Lá me acalmei e afastei esses pensamentos bélico-gastronómicos da minha cabeça! Estiquei lentamente a linha até a mesma se encontrar sob pressão e comecei a dar ligeiras e quase gentis pancadinhas no cabo da cana na esperança que a amostra se desprendesse daquele velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela agua. Ao fim de alguns segundos que mais pareceram uma eternidade a amostra desprendeu-se e caiu á agua! A um simples salto de distância de onde se encontrava o meu Némesis. Imediatamente a adrenalina se instalou em mim fazendo o meu coração bater descompassadamente qual sincope me estivesse a acometer.

Pensei para mim próprio, “Calma! Não chegaste a fazer muito barulho e a amostra caiu em condições, pode ser que ainda o enganes!”. Deixei passar longos e penosos segundos, numa luta titânica contra mim próprio e a ansiedade que me assaltava e gritava para que começasse a transmitir algum sinal de vida aquele bocadinho de vinil que inanimado, repousava no leito da charca. Após estabilizar a minha respiração e os meus batimentos cardiacos, mas não aquele tremor ligeirinho que afectava as minhas mãos, ergui a ponteira da minha cana e ousei dar um pequeno esticão á mesma, quase em simultâneo a amostra deu o primeiro sinal de vida, foi então que Ele se apercebeu da sua presença...

O que seria aquela pequena criatura que tinha ousado ultrapassar as fronteiras do seu reino e ido á sua porta desafiá-lo? Lentamente virou a sua fantasmagórica cabeça na sua direção e ficou a observar a criatura indeciso quanto ao que lhe fazer. Foi aí que voltei a transmitir um sinal de vida á amostra, mas desta vez fi-lo com redobrado, e talvez até excessivo, vigor fazendo com que amostra cobrisse num segundo aqueles poucos centimetros que os separavam. O meu Némesis, visivelmente surpreendido, e talvez irritado, com o descaramento daquele pequeno ser chegou junto do mesmo e, com um rápido movimento da sua boca, aspirou aquela pequena insignificância castigando-a assim pela sua imprudência!

Mais uma vez ali o tinha á minha mercê, pensamentos das frustrações, desgostos e falhanços passados pululavam a minha mente, mas desta vez, e com o meu raciocinio endurecido dessas experiências, senti-me estranhamente, e surpreendentemente calmo. Fiz aquele movimento ascendente, e já tantas vezes executado, da cana ferrando o cruel anzol nos seus lábios!

Ao sentir aquela picada, e apercebendo-se do logro em que tinha caído, o meu Némesis enlouqueceu, logo ele que sempre se tinha pautado por uma calma digna de um ansião! Mas não desta vez, começou a nadar e a saltar freneticamente numa tentativa vã de se libertar daquele estranho objecto que o tinha atraiçoado. Mas desta vez as teias do destino estavam, pela primeira vez, contra ele, nada do que pudesse fazer o libertaria daquele aperto mortal. Talvez por se aperceber disso ou talvez por finalmente sentir as suas forças a fraquejar, deu-se por vencido e deixou-se lentamente rebocar até á margem, até junto dos pés daquele que finalmente o tinha conseguido superar.

Durante um bocado fiquei ali sem reação, a olhar para aquele enorme corpo esverdeado que se contorcia nas ervas da margem, quase que nem ousava tocar-lhe! Mas logo, e apercebendo-me que finalmente tinha conseguido, finalmente o tinha superado, me aproximei dele e lhe peguei com as minhas mão trementes. Naquele momento todos os velhos pensamentos de tristeza, frustração, desânimo, vingança e de batatas a assar no forno se desvaneceram.

Não, naquele momento o unico sentimento que me passou pelo espirito foi uma enorme admiração por aquela fascinante e absolutamente bela criatura. Admiração por aquilo que ele era, fascinio por tudo aquilo, e que só naquele momento me apercebi, que ele ainda podia vir a ser. Retirei-lhe, o mais brandamente que consegui, o anzól da boca e com redobrados cuidados voltei a colocá-lo no seu elemento. Desajeitamente empurrei-o para trás e para a frente proporcionando-lhe um jorro de de muito necessitado oxigénio para as suas guelras. Lentamente a força voltou ás suas barbatanas e começou-se a contorcer, com um ultimo afago seguido de um empurrão deixei-o ir e fiquei a observá-lo enquanto nadava vagarosamente, e ainda meio combalido, na direção do seu velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela água!

Voltei para casa, com um sorriso no rosto do tamanho do mundo, e durante um tempo dediquei-me a outras guerras, outras batalhas, outros inimigos. Passado um ano voltou-me a assaltar o espirito a ideia do meu Némesis. Queria saber como ele estava, como tinha passado o Inverno, se ainda era o rei e senhor daquela pequena charca, sempre junto ao seu velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela água!

Uma tarde de Verão, e não conseguindo resistir mais á curiosidade, lá me fiz novamente ao caminho. “O caminho”, aquele caminho que eu já conhecia como a palma das minhas mãos, o caminho de tantas frustrações que terminaram numa esfusiante alegria, uma enorme alegria, uma fonte de riso capaz de contagiar uma nação. Lá chegado fiquei mais uma vez uns minutos a olhar para aquele perfeito quadro natural capaz de tirar a respiração ao mais empedernido dos homens. Encaminhei-me até á beira da agua e olhei mais uma vez para aquele velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela água, e esperei lá ver aquele que já tinha deixado de ser o meu velho Némesis para ser sim o meu velho amigo. Mas ele não estava lá...

Procurei ao longo da margem da charca a ver se o encontrava a meio de alguma incursão em busca de alimento mas nada, sentei-me á sombra de um medronheiro á espera que ele se levantasse da escuridão das profundezas e retornasse á sua casa, mas novamente nada. Senti-me nervoso, era a primeira vez, de tantas e tantas vezes em que o tinha procurado, em que ele não me aparecia. Ao fim de 2 horas decidi voltar, frustrado e triste, para casa. Durante as semanas que se seguiram voltei aquela charca mais 5 vezes, e 5 vezes de lá voltei sem sinal do meu velho amigo! Questionei-me do que lhe teria acontecido, teria ele sucumbido ao cansaço da nossa luta? Teria aquela magana daquela lontra que eu uma vez tinha visto lá mais abaixo na ribeira chegado a ele? Pior ainda, teria aquele jovem de canita ás costas montado na sua bicicleta por quem eu tinha passado naquela tarde á uns meses atrás dado com ele? Teriam as minhas pragas de batatas á volta dele no forno, de grelhas sobre o lume e de azeite a ferver se concretizado?

Voltei lá ainda mais 2 vezes até que desisti, na ultima delas esqueci aqueles pensamentos tristes, sentei-me debaixo daquele medronheiro a fumar o meu cigarrito e a olhar uma ultima vez para aquele velho tronco, daquele velho Sobreiro, já cozido pela agua, e imaginei-o ali e quis acreditar que ele ainda ali voltaria um dia, vindo das profundezas.
Afinal, cada um acredita naquilo que quer...
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tiagopacheco
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Re: O meu Némesis...

Mensagem por tiagopacheco »

Excelente! Adorei!
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NelsonP
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Registado: terça fev 21, 2012 3:13 pm

Re: O meu Némesis...

Mensagem por NelsonP »

=D> M A R A V I L H O S O =D>
Estamos na presença de um escritor de eleição onde as suas histórias ganham cada vez mais interessa á medida que a historória vai decorrendo.
Obrigado pela partilha fantástica Óh elvas. Grande capacidade sim senhor :fixe: :fixe:
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ffgsoares
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Registado: domingo abr 17, 2011 10:04 pm

Re: O meu Némesis...

Mensagem por ffgsoares »

Tás muito poético e um bocadinho melancólico ó José :join:

Está muito bom,... gostei !!!

Um abraço :fixe:
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jose elvas
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Registado: sábado dez 04, 2010 5:45 pm

Re: O meu Némesis...

Mensagem por jose elvas »

tiagopacheco Escreveu:Excelente! Adorei!
NelsonP Escreveu:=D> M A R A V I L H O S O =D>
Estamos na presença de um escritor de eleição onde as suas histórias ganham cada vez mais interessa á medida que a historória vai decorrendo.
Obrigado pela partilha fantástica Óh elvas. Grande capacidade sim senhor :fixe: :fixe:
Ainda bem que gostaram!

Abraço :wink:
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jose elvas
Utilizador Regular
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Registado: sábado dez 04, 2010 5:45 pm

Re: O meu Némesis...

Mensagem por jose elvas »

ffgsoares Escreveu:Tás muito poético e um bocadinho melancólico ó José :join:

Está muito bom,... gostei !!!

Um abraço :fixe:
Melancólico? Nem por isso :D ! Estes textos que aqui ponho nem sequer foram escritos agora, são coisas que para aqui tenho saídas daquilo a que gosto de chamar "O meu livro de memórias", que mais não é que um caderno onde vou escrevendo estas carolices, baseadas em coisas que me acontecem na pesca, quando me dá na veneta. Gosto muito de escrever, é uma das minhas paixões, e quando se junta essa paixão á da pesca faço este género de coisas, muitas vezes quando estou á beira d´agua á espera que o raio do peixe pique... :mrgreen:
canudo
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Registado: sexta jun 26, 2009 10:35 pm

Re: O meu Némesis...

Mensagem por canudo »

Boas,
Excelente escrita companheiro,obrigado por mais esta partilha :fixe: =D> =D> =D>
Canudo
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Trophy_Master
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Mensagens: 2623
Registado: domingo jan 22, 2012 10:05 am

Re: O meu Némesis...

Mensagem por Trophy_Master »

Belas palavras
muito sentimento transmitido
adorei cada segundo da leitura
obrigado pela bela leitura
=D> =D> =D> =D>
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