O pesqueiro do Vieirinha(capitulo 1)

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atsimoes
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O pesqueiro do Vieirinha(capitulo 1)

Mensagem por atsimoes »

Também eu tenho as minhas tormentas, tavez um dia acabe esta viagem que comecei, é veridica e não acaba com o velho dormindo e sonhando com os leões de Africa nas praias ao entardecer....(O velho e mar)


1º Capitulo




O Pesqueiro do Vieirinha



Todas as rochas têm uma história para contar. Já cá estão há muito tempo, adquirem com o tempo e o desgaste da erosão, formas, cores, tonalidades que vão desde o vermelho barrento, ao amarelo esbatido, adquirem formas humanas, precipitam-se sobre o mar em posições que desafiam a lei da gravidade, e todas elas observam desde os primórdios do tempo, gente que as calca, que pesca em cima delas, e lhes deixam uma marca indelével em cima por mais anos que passem, enquanto formos vivos...
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Este é o meu testemunho, dum pesqueiro, onde outrora existiu um pescador, chamado Vieirinha que ao amanhecer e pôr-do-sol, esperava pelos sargos, que abundavam nesse tempo e eram um complemento no magro orçamento das gentes que viviam perto do mar...

Setembro tinha chegado, o primeiro leste soprava pela manhã. As rolas, voavam baixinhas batidas pelo vento, por cima dos pinheiros retorcidos do Cabo do Mundo, dobravam as chaminés da refinaria, e rumavam a sul escapando nos dias da semana em que as armas se calavam...
As férias escolares prolongavam-se pelo Verão adentro, e eu via-o subir a rampa do cruzeiro, por entre as ramadas dos vinhedos tingidos de preto, desembocando no fontanário que vertia uma água fresca pronta para lhe matar a sede provocada pela salitre e o leste seco.
Esperava-o, observava os seus movimentos cadenciados, a cana apertada no quadro, os sargos tão grandes cinza prata dependurados no guiador, a velha bicicleta estava tão gasta quanto ele, chiando, gemendo, num som lamurioso de cansaço, tão duro como as pedras da calçada que trilhava, tudo nele era esforço...
As gotículas de suor bordejavam aquele rosto sulcado por cicatrizes, grossas como cordame de cargueiro, finas como linhas de mão, queimadas pelo sol; de baixa estatura, os seus olhos eram de um azul profundo da cor do mar. A sua magreza e secura revelava que já cá andava neste mundo há muito tempo, mas a alegria daquele olhar e doce sorriso, não tinham ainda sido vencidos pela idade, era um oceano cheio de vida.

-Hoje são grandes...-Pensei que me poderia levar logo ao entardecer? -Tenho caranguejos da muda. E sou capaz de segurar na cana, enquanto os prepara!!.. -Ele olhou-me, tornou a passar a mão de leve nos sargos, passou-os pela água fresca. -Olha!.. – Vês a barriga deste? -É uma fêmea, estão gordos a caminho de casa, lá para o sul. -Queres vir logo? -Hum.., não sei se te deva levar.... -Mas promete-me uma coisa.: Não fujas de casa! -Gosto muito do teu pai e desde pequeno que te levo ao mar...
-Eu... sou...ou aliás...-Gostaria que fosses meu filho, tenho fé que darás um excelente pescador. -Anda vamos ás fábricas da sardinha! -Temos lá hoje bastante isco fresco, vi as traineiras de proa levantada, e as gaivotas discutindo – he, he! -Sempre a velha rabugenta na frente, quer sempre os melhores pedaços...
- O meu Pai não está! -Eu não o vejo há dias!... -Sabe Sr. Vieira, foi á aldeia ver os cães eles andam excitados, aproxima-se a abertura e tem muitos bandos novos de perdizes este ano. - Ele disse-me que o perdigão velho do bando seria para si, e eu sei reconhecê-lo!

Subimos juntos pela rua das fábricas de peixe, passavam com os bidões cheios de sardinha, nas pesadas carrinhas em marcha de vertigem vindas da lota. Cheira que tresanda, tudo se confunde num odor enjoativo, a sardinha reluz e todos se saceiam do pão do mar, até que a ultima safra do dia se acabasse, e as sirenes num coro desafinado anunciassem o fim da jornada. E o dia findava, o vento trazia os últimos sons, dos gradeamentos das últimas fabricas que se fechavam. Fábricas fechadas são espaços húmidos e nostálgicos, despidos de qualquer vida ou calor humano.Os homens, esses, eram obrigados a olhar para o chão, com o peso do cansaço nos ombros a caminho de casa. Bebiam uma cerveja na quietude de um entardecer de Setembro, em silêncio, e o mar resplandecia de um doirado que feria os olhos e os dias pareciam não ter fim...

-Sr. Vieira?
-Diz? -Enquanto olhava fixamente o ângulo da linha, as duas mãos seguravam o encaixe da cana, de carvalho americano, resistente e curvada. -Que tens?
-Um dia vou ser como o senhor, vou envelhecer, e vou pescar assim?
- Sentado no rebordo da pedra, mexendo nos caranguejos com a mão, olhava o infinito, fechava os olhos, acariciava o fresco das carapaças e esperava pela resposta, que tardava...
-Não sei... – Terás a tua oportunidade.-Verás praias de areias tão brancas, que cegam, cidades inteiras de adobe vermelho, gente estranha, lugares distantes, e sentirás a solidão, o amor, o ódio e o pior veneno deles todos... -Qual? - Perguntei eu. E fez-se silêncio, numa pausa entrecortada, um bando de maçaricos reais rasgou o infinito, a cor da água era agora púrpura, uma linha branca e estreita desenhava-se no horizonte e uma vela inclinada rumava a sul, era inútil falar agora, falávamos apenas o essencial.

-Sabes qual o peixe que nunca dorme?.Desde que nasce, nada até morrer, porque precisa de arrefecer o seu sangue quente e se parar, morre?
-Se me responderes eu deixo-te apanhar um peixe daqueles, o maior, e levá-lo-ás debaixo do braço para casa, será o teu primeiro peixe e já poderás ser um Homem.
-Não, não sei, mas poderei arranjar-lhe mais caranguejos, se quiser,..-Mas, não sei...
Esperei pela resposta, mas agora ele não estava ali, as suas mãos curvadas e calejadas, revelavam a verdade, a força do último movimento, da mão direita, os dorsos reluzentes e os rabos que chapinavam daqueles peixes, a ganchorra curta e afiada, presa no pulso pela alça de couro, esperava pela hora da matança. E os peixes de tão pesados, presos, num último esforço de vida, resistiam e no seu próprio movimento de recuo, erguiam-se e caíam no fundo do barco, batendo pancadas sobre pancadas no meio de manchas gordurosas de sangue, de grossa pele azulada. -São os atuns, magníficos..., não tem fronteiras, vão para onde querem e são livres....

No regresso a casa, debaixo do alpendre encostava a cana e o cesto, sentava-se e enrolava um cigarro, enquanto de dentro vinha o cheiro a peixe frito. -Queres jantar aqui? - Perguntou. Na parede, dependuradas, ali estavam, a ganchorra e o bicheiro mais comprido, a madeira dos cabos era agora seca, cinzenta, gretada, ali ficaram desde a sua última campanha, á chuva e ao sol e ali ficariam. E eu punha-lhes a mão e sentia no frio da madeira as curvas dos seus dedos e ouvia a gritaria, EIH! EIH! Segurou-me pelo braço e respondeu. - Estão aí e ficarão até apodrecerem! Os seus olhos agora eram de um azul esbatido em dias de prenúncio de Tempestade. A ambição é o pior dos venenos, mesmo mais forte que a inveja ou o ciúme; pode derrotar um homem e vencê-lo, e não podemos controlar este instinto, pode matar!
Alimentamos duas Guerras Mundiais, com a sua carne, eram tantos e tão abundantes que cada vez montava-mos as armações, mais longe da costa, mas não nos chegava, era preciso matar mais uns quantos, alimentar os homens nas trincheiras para poderem matar mais uns quantos! Agora tudo se acabou! Desapareceram, fugiram não sei para onde, as guerras acabaram e ficamos na miséria, as fábricas fecharam, as armações apodreceram ao sol, as casas fecharam-se e... eu... .!! Chorava, agora, Dona Eugénia, levemente sacudiu a sua mão do meu braço, sentou-se e curvou a cabeça. Vá embora agora menino, daqui a nada, o álcool soltará os seus demónios, num desespero de causa, procuram pela casa toda algo que os entretenha. -Vê aquela imagem, ali? - Estão sempre a olhar para ela, o Sr.Vieira em novo ao lado de um Atum enorme, sorrindo ao lado de companheiros, da campanha, e ficam mais calmos, sussurrando coisas que eu não percebo. Fugi dali para fora, a correr pela noite escura, da viela mal iluminada, chegavam-me vozes vindas das covas fundas, transformadas em tabernas, num cheiro misto de vinho, barris de madeira bafienta e suor, com o coração a bater desordenadamente, a respiração ofegante, até chegar a casa, os homens riam-se, oh pescador!!! Aonde vais nessa pressa?


E a Revolução chegou..., na turbulência dos anos que se seguiram, fui levado pela tormenta, na corrente que me levou, muitas das vezes fui deixado qual concha a secar ao sol, em praias desertas, depois a maré vinha e era levado novamente para lugares que nunca tinha visto. De noite via as estrelas, o barulho do mundo em espiral rodopiava até ser novamente depositado noutro lugar onde ouvia o vento, só o vento e mais nada, enquanto o sol se levantava e punha, e a vida se erguia e definhava num som de leves folhas de Outono secas e pisadas num parque de uma Cidade algures, que não decorei os nomes porque eram sempre todos iguais.
Passaram-se quinze anos, vi e cresci de facto, até que um dia a tempestade acalmou, e regressei numa noite de luar, a uma praia perto da casa onde nasci, uma onda calminha depositou-me, abri os olhos, olhei, não vi ninguém, lavei as feridas, levantei-me e renasci.





(continuação, o reencontro)
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