Este pequeno texto não é um relato. Também não lhe posso chamar ficção pura, porque praticamente tudo, foram situações que aconteceram comigo ou com pessoas que conheço e com quem pesquei. Será portanto, uma amálgama de pequenas situações que aconteceram , sendo que a parte das pescarias em S. Pedro do Estoril, as viagens de comboio, etc foram de facto as minhas próprias vivências na pesca.
Estas madrugadas de pouca actividade tinham pelo menos o condão de o fazer reflectir profundamente.
Ali estava ele, sozinho, como era habitual na maior parte das vezes, contemplando o horizonte que ia ganhando cor. Aquele era um quadro que tinha visto muitas e muitas vezes nos últimos três anos da sua vida, e não se fartava de o ver. Pintado pelo criador, era impossível de reproduzir ou captar em imagem. Era uma obra de arte.
Estava encolhido entre duas pedras para se abrigar do vento sul que soprava com vigor, e ao mesmo tempo para se manter invisível aos olhos dos seus adversários.
Se eu os vejo eles também me conseguem ver.
Dizia ele aos amigos quando estes lhe perguntavam porque pescava escondido.
Se eu os vejo eles também me conseguem ver. Dizia ele aos amigos quando estes lhe perguntavam porque pescava escondido.
A sua cabeça, quando ali estava, viajava a 1000 à hora.
Voltava agora atrás muitos anos da sua vida, ao dia em que comprou o seu primeiro conjunto de pesca.
Um dos seus primeiros ordenados,(porque os 3 ou 4 primeiros foram para comprar um gira-discos), foi para ir à loja de pesca “O Anzol”, e comprar uma cana daiwa de dois elementos e um carreto também da mesma marca que ainda hoje possui, embora já não o acompanhe nas suas fainas. Tinha então 15 anos.
No mês seguinte voltou à mesma loja e adquiriu mais uma cana e um carreto que ofereceu ao seu irmão, e a partir dai, praticamente todos os domingos eram dia de pesca. O Manuel, o Nuno, o seu irmão Carlos e ele próprio saiam de casa de manhãzinha cedo e apanhavam o 31 até ao Cais do Sodré.
Durante a viagem de autocarro tinham tempo para colocar uma das canas que era praticamente da cor dos varões do autocarro ao alto, e nos arranque do mesmo quando as pessoas desequilibradas iam agarrar no varão este desaparecia como por milagre, fazendo com que as pessoas caíssem. Não era bonito, mas os putos fazem coisas...e riam até ao choro. Duas vezes quase que levavam uns tabefes, mas a coisa acalmou sem problemas de maior. Chegados ao Cais do Sodré, iam procurar os vários senhores que vendiam ali pelas ruas os pacotes de minhoca e compravam alguns, que na altura eram muito bem aviados. Ás vezes o senhor oferecia mais um e lá ficavam todos contentes.
Por vezes o isco não chegava e lá tinham de improvisar com umas lapas e uns mexilhões, que os mais experientes diziam serem grandes iscos, mas que eles, na sabedoria própria dos putos, sabiam não ser verdade. Os putos sabem tudo e não se deixam enganar.
Claro que aquilo não prestava para iscar...eram colocados de qualquer maneira no anzol, sem atar e lançados com toda a força possível, porque os peixes estão lá longe e quando o aparelho caia na agua já não tinha isco...
Uns robalecos pequenos, umas sarguetas e muitos bodiões era o que traziam para casa, para as mães fritarem, que aquilo não dava para mais nada, mas o objectivo era sempre cumprido, porque chegavam a casa completamente estourados e completamente felizes com o dia que haviam passado juntos.
Não havia play station naquele tempo.
Estava ele de sorriso no rosto, a recordar tantas e tantas histórias dessa pescarias, quando algo o fez despertar. Aquele ponto vermelho vivo que dançava com as vagas desapareceu por um segundo, para logo voltar a aparecer.
Olá, aqui há gato...
Ficou atento , mas nada mais aconteceu no minuto seguinte.
Recolheu a pesca, e verificou com entusiasmo que o caranguejito do tamanho de um polegar que tinha espetado no anzol chinu nº1 tinha desaparecido.
-Já cá andam.
Pegou na garrafa de água, lavou a cara, bebeu três goles e comeu o pastel de nata que tinha comprado na dona Antónia no dia anterior. Ajeitou o seu boné do glorioso que o acompanhava para todas as pescarias e reviu se o fio 0,25 e o anzol se encontravam em condições.
Pediu sabedoria e protecção ao criador em dois segundos, agarrou em duas mãos cheias de pequenos caranguejos, bem vivos, que colocou na garrafa de plástico cortada ao meio à qual tinha passado uma guita para pendurar ao ombro e desceu para uma pedra que ficava um pouco mais abaixo, de forma a ter acesso a um pequeno buraco que era varrido pelas vagas, mas que ficava sem água na escoa, onde encalharia algum peixe maior.
Iscou novamente e lançou para junto de uma pedra que se encontrava ilhada e carregada de marisco, e desta vez forçou-se a ficar atento.
Passados poucos segundos detectou o primeiro sinal, quando a boia de 30 gramas se deslocou ligeiramente para a esquerda. Instintivamente, levantou devagar a ponteira da sua vara e sentiu uma pequena prisão. Fez um pouco mais de força e desta vez, do outro lado da linha, sentiu o usual puxar de um animal que não está disposto a perder o pequeno almoço, e confirmou a ferragem.
-Já estás. É um velho. Dizia ele divertido no primeiro arranque do peixe, vigoroso mas continuo, não aquele bate-bate constante dos sargos mais novos.
O carreto nas mãos dele já não canta como antigamente, porque agora,depois de anos de experiência e alguns peixes de bom porte perdidos, percebeu que com a maquina destravada, controlava melhor as corridas dos da 3ª idade.
-O drag sou eu, dizia ele a quem lhe pedia ensinamentos. Quando ele quer ir, deixa, quando vai para perto de alguma pedra, folga para evitar a ruptura da linha, quando sentes que está a perder força enrola algumas voltas...
Este não estava fácil, mas ao fim de algum tempo lá se deitou na alcofa.
A faina continuou até perto do meio dia, altura em que a actividade parou. Calmamente arrumou o material, molhou a alcofa já bem composta e começou o caminho de volta .
A meio da subida já praguejava.
Fonix, já não tens idade para estas m*****, nunca mais meto os pés aqui.
E no dia seguinte lá estava ele, na mesma pedra, sozinho com todo o mundo. Sentia-se maravilhosamente bem, quando contemplava o imenso azul, e estando atento via tudo o que queria ver. Era ali que facilmente percebia o sentido da vida.
Aquela era a sua droga. Era pesco-dependente.
-Aqui sou feliz. O que mais posso pedir? Foi para isto que Deus se deu a todo este trabalho.
E continuou a reflectir. Se o objectivo não fosse sermos felizes e desfrutarmos do mundo por inteiro, tinha-nos feito minhocas ou outra coisa pior, sem cérebro, sem capacidade de amar e de compreender. E não tinha posto neste planeta tantas maravilhas.
Já pensaram o que seria o mundo a preto e branco? E sem cheiro? E sem sabor?
O que seria um sargo grelhado a saber a nada?
Façam o favor de ser felizes.
Uma vida a ser feliz
- jose elvas
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Re: Uma vida a ser feliz
Muito bom...
Re: Uma vida a ser feliz
Belíssima história =D>
-
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Re: Uma vida a ser feliz
Quando trabalho não há e os chocos, os sargos as douradas e as corvinas ainda não chegaram para me fazerem feliz, passo algum tempo a escrever.
- jose elvas
- Utilizador Regular
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- Registado: sábado dez 04, 2010 5:45 pm
Re: Uma vida a ser feliz
Partilho dessa paixão...luis amaral Escreveu:Quando trabalho não há e os chocos, os sargos as douradas e as corvinas ainda não chegaram para me fazerem feliz, passo algum tempo a escrever.
Re: Uma vida a ser feliz
Boas camarada LUIS AMARAL !
GOSTEI , e sei do que falas !
Também eu de alguma forma me revejo nessa tua estória !
Com pequenas diferenças :
O meu autocarro não era o 31 mas sim o 15 , e o meu «poiso» era Monte-Estoril !
De resto tudo era parecido :
Desde as cobóiadas no autocarro e no combóio , até aos grandes bodiões que naquela altura
por ali eram «mais que as mães» !
Lembro-me como se fosse hoje daquela «tasca» no C.do Sodré , numa transversal à Rua de S.Paulo
em que havia sempre alguém com meia dúzia de pacotes de minhoca em cima de um caixote de
fruta para ganhar uns trocos !
Lembro-me também de ir na vazia ao Terreiro do Paço e «cagar» os pés no lodo para apanhar
uma mão-cheia de minhocas ou de ir em frente da lota (mais tarde passou para Santos) e rebuscar
nos contentores do lixo por uma qualquer cabeça de peixe , com a qual , junto com uma saca de
batatas vazia , uma corda e um pedaço de arame apanhávamos caranguejo para a pesca !
Mas lembro-me sobretudo com imensa saudade daqueles 3 ou 4 «índios» dos quais passados 32 anos
nada sei , e que me acompanhavam naquilo que na época era uma «aventura» mas que hoje é
perfeitamente «banal» !
Muitas coisas boas se perderam com o passar dos anos , e que infelizmente não voltam !
FICA BEM !
GOSTEI , e sei do que falas !
Também eu de alguma forma me revejo nessa tua estória !
Com pequenas diferenças :
O meu autocarro não era o 31 mas sim o 15 , e o meu «poiso» era Monte-Estoril !
De resto tudo era parecido :
Desde as cobóiadas no autocarro e no combóio , até aos grandes bodiões que naquela altura
por ali eram «mais que as mães» !
Lembro-me como se fosse hoje daquela «tasca» no C.do Sodré , numa transversal à Rua de S.Paulo
em que havia sempre alguém com meia dúzia de pacotes de minhoca em cima de um caixote de
fruta para ganhar uns trocos !
Lembro-me também de ir na vazia ao Terreiro do Paço e «cagar» os pés no lodo para apanhar
uma mão-cheia de minhocas ou de ir em frente da lota (mais tarde passou para Santos) e rebuscar
nos contentores do lixo por uma qualquer cabeça de peixe , com a qual , junto com uma saca de
batatas vazia , uma corda e um pedaço de arame apanhávamos caranguejo para a pesca !
Mas lembro-me sobretudo com imensa saudade daqueles 3 ou 4 «índios» dos quais passados 32 anos
nada sei , e que me acompanhavam naquilo que na época era uma «aventura» mas que hoje é
perfeitamente «banal» !
Muitas coisas boas se perderam com o passar dos anos , e que infelizmente não voltam !
FICA BEM !
Re: Uma vida a ser feliz
Bela recordação, que nostalgia me fizeste sentir agora ó Luis, obrigado !
Re: Uma vida a ser feliz
Estaremos cá pra ler as vossas «escritas».... jose elvas a malta ainda não conhece essa faceta ou conhece ?!!jose elvas Escreveu:Partilho dessa paixão...luis amaral Escreveu:Quando trabalho não há e os chocos, os sargos as douradas e as corvinas ainda não chegaram para me fazerem feliz, passo algum tempo a escrever.