Os meus Caros Amigos e leitores que me desculpem, andei ás voltas e voltas onde colocar os textos e achei esta secção dos Tótós como a fase da nossa vida em que de facto pensamos muito na nossa questão existencial.
Eu penso permanentemente enquanto pesco e vivo.
O meu obrigado
Belchior o Faroleiro (parte II)
(O reencontro)
Os anos passaram como os ventos chegavam em cada mudança de maré. Voltei a subir ao farol da minha vida quando decidi aceitar que a inocência que tinha perdido não fora em vão…A perca de algo ou alguém que amamos é uma dor que aprendemos a suportar porque apesar de tentarmos tapar todas as frinchas e janelas da nossa vida , há sempre uma réstea de luz que se esgueira por entre as fendas mal tapadas… Mesmo as árvores torcidas ao vento…Elas continuam a viver mesmo dobradas….A sua vontade de viver é mais forte que a fúria dos elementos, mesmo cedendo uma parte da sua vontade. Eu aceitei, cedendo uma parte da luz ao meu coração…
Na altura os 213 degraus da subida em caracol pareciam que não terminavam enquanto Belchior não me agarrasse pelos quadris e me levasse até ao cimo com um sorriso e cantarolar de assobio ,rindo , ecoando pelos fundos em espiral…Hehehe, menino está quase na hora…-Olhe!! , Já tenho os sinais balizantes acesos do porto comercial!!Está na hora.! A lona branca era levantada, porque de dia evitava que os raios solares provocassem um aumento de temperatura e a óptica provocasse um reflexo de efeito contrário.
Em ponto , no zénite solar, descíamos para a porta blindada de ferro fundido com as inscrições “”1925-Barbier,Bernard & Turene””. A porta pintada de amarelo com rebites enormes, era circundada de paredes de madeira de mogno envernizado que assentavam sobre as asnas de sustentação de todo o corpo giratório. Das mãos destes operários do principio do séc. forjaram-se os mais belos faróis de todo o mundo, para onde eu desejava ter ido. E o momento chegava…Uma luz de uma lâmpada de 5000 watts enclausurada numa óptica de latão e cristal rasgava o céu e o firmamento alumiando o caminho dos que vivem no mundo da água. Neste mundo só vivem duas espécies de homens.Os que temem a terra e os que não temem o mar.
Mas só o farol não cedeu ao tempo,ás intempéries, ou há lenda que o engenheiro que o construiu vendo a sua obra acabada se atirou lá do alto porque achou que de torto ele ficou…..Ele não caiu…
A vila não resistiu ao tempo, as palmeiras também não, e as pedras de berlinde com que os gigantes se entretinham foram sendo retiradas para dar lugar a condomínios de luxo.. Apenas ficou o POETA, mais sozinho…Os verdes campos deram lugar a templos modernos de consumo, e o arquitecto que a transformou, é agora aclamado por todo mundo , onde o cinzento e o moderno imperam.
Belchior foi o faroleiro que se manteve mais anos por cá. Morreu de amores por uma jovem camponesa que de leiteira no quadril da bicicleta, todos os dias lhe deixava á porta o pão e o queijo fresco da manhã.
Por esse motivo , era dada a oportunidade a um faroleiro de se casar com um local e permanecer aí por um período máximo de 9 a 10 anos, em vez da rotatividade normal de 4 .
O peixe também desapareceu, e acho mesmo que as gaivotas já não rumam ao mar tanto assim.Agora preferem pousar pachorrentamente nos telhados, numa vida sedentária, esperando pelos detritos da lixeira municipal de um aterro aberto lá para os lados da serra de terra esventrada rodeada por florestas de eucaliptos e cheiro pestilento da fábrica das tripas.
E foi assim que um dia no desvario consumista dos anos noventa , num parque qualquer de uma dessas catedrais, caóticas de gentes e pressas, que retirando a viatura algo me despertou a atenção….
Abri aporta…Lentamente aproximei-me, cada passo se tornava mais pesado, mais lívido ,de que algo me trespassava, o corpo como um sopro frio, mortal . Aquele gesto….o mesmo braço…gesticulando ,recebendo as boas vindas, dos que partem e que chegam…Aproximo-me e estou a três metros dele…
Não se apercebeu…Está mirrado, sem cabelo e os seus músculos deram lugar a frageis ossos, que flutuam numa camisa branca larga de mais. Queimado pelo sol, rosto macilento verrugoso, onde o seu sorriso desenhava uma cárie extensa de anos de desgaste….
Belchior!!!... Parou de arrumar a viatura, e fitou-me enquanto alguém praguejava pela manobra imperfeita
Bel….!!!Minha luz!!!Já não consigo segurar por mais tempo ,o tempo que demorei a chegar aqui!!!Meu…menino!!!Ambos era-mos agora um só farol,um só tempo,uma só luz…Senti o seu
tremor,no meu peito,frágil, consumido pelos anos de solidão num lugar remoto, enlouquecido pelo bramir do mar e réstea de tempo sem tempo para nada fazer…
Eu… eu ..não aguentei!!Ela…morreu há muito, e desde aí não consegui aguentar até á reforma.Setenta anos esperando, pelo repouso tranquilo ,dum mar que já não podia ouvir!!Voltou-se contra mim!! Nunca mais o vi…meu menino pescador.!!Nunca mais..!!O seu choro e lamento , consolava-o nas noites de Inverno, onde vivia numa ilha de pequenas casa rodeadas de um páteo central onde , cada parede serve de tapume á miséria do outro lado que se segue, num quadrado febril , alternado pelo cheiro do peixe que mata a fome e o álcool que faz esquecer….
Afaguei-lhe o pescoço, como o fazia a mim, segurei-o pela mão e apresentei-lhe a minha família.
-Vê??Esta é a minha filhota..-Como ela é parecida consigo em menino!!O raio do congro, nunca o consegui apanhar!!Nunca!!-Faça-o por mim, apanhe-mo um dia, ..apanhe-o!!!
Estou velho e cansado, e já não posso ver o mar! Agora vou amealhando umas gorgetas por aqui, sempre me engordam a precária reforma.
Abracei-o, depositei uma recompensa no seu bolso , sem ele se aperceber, pois sabia que o meu Faroleiro do alto do seu farol nunca o aceitaria.Lá do alto dominava o mundo da luz e das trevas e vivia disso, dessa dignidade de ter sido um faroleiro que alumia o mundo dos mortos e dos vivos…
Nunca mais vi o meu Rei Mago. Recordá-lo e terminar esta história é colocar o seu nome ao lado do Poeta, do mar que tanto amo.Ele merece-o.
Nota do autor: Até á década de setenta, a reforma de um faroleiro só chegava aos setenta anos.Depois disso a reforma chegou aos 56 anos aquando da sua militarização.
Esta obra foi escrita de uma forma mais resumida para um trabalho que a minha esposa precisava para apresentar no hipermecado onde actualmente trabalha .A ideia do trabalho era que resumidamente num curso de formação profissional as trabalhadoras dissessem quais os benefícios que estes templos dourados tinham trazido á sociedade….Depois de ler o texto , fez-se um silencio na sala , e os arautos das modernidades, vestidos a rigor de fatos de marca e livros da excelência empresarial, acho que compreenderam a mensagem…Acho que sim…Passado uns tempos, este texto esteve exposto na vitrine da Companhia, por onde todas as pessoas passavam a caminho dos seus gabinetes…
Julgo que alguém deve ter lido e compreendido..
António Simões, Leça da Palmeira, 21 de Julho do ano da graça de 2007
Belchior o Faroleiro(parte II) O reencontro
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