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Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: sexta dez 13, 2013 12:44 pm
por JMET
O jovem Zezé tinha chegado muito cedo ao emprego. E, sentado à secretária, sem nenhuma vontade de começar com o expediente, deixou-se ficar a recordar a grande pescaria da véspera. Mais de vinte sargos e, no final da pesca, um belo robalo de quase dois quilos. Aquela era sem dúvida a melhor pescaria que já tinha feito naquele ano de 1973.
Sorriu e deixou vaguear o pensamento. Dentro em pouco chegariam as suas colegas e começaria a labuta.

Foi então que…
Foi então que teve uma ideia. Foi buscar papel A4, cortou as folhas ao meio, e pôs-se a rabiscar numa delas uma circunferência de semi-círculos aos quais acrescentou um círculo no meio. Depois fez um risco vertical. Olhou os rabiscos e considerou que sem dúvida representavam uma flor. Acrescentou o desenho simplificado de uma folha ao rabisco que representava o caule da flor e considerou o trabalho completo.
Depois, repetiu o mesmo desenho nove vezes. De seguida, foi buscar uns sobrescritos A5 azuis que por lá havia e ensacou os desenhos das flores. Por fim, foi colocar os envelopes nas secretárias das colegas solteiras. Quatro na sua sala de trabalho e os restantes em secretárias de outras secções. Após isto, saiu para tomar um café.

Quando regressou, Zezé não estranhou o rebuliço que reinava na secção. Sentou-se e apreciou o que parecia serem galinhas num galinheiro. Dez jovens mulheres, falavam quase todas ao mesmo tempo, com envelopes azuis nas mãos e mandando palpites sobre o autor da gentil brincadeira.
“Foi o Antero”, dizia a Inês.”Não, só pode ter sido o Diogo”, dizia Amélia. “Isto são coisas mas é do Ricardo”, alvitrou uma outra.

Enquanto isto, Zezé virava folhas e folhas de uma listagem, fazia anotações e, ciclicamente, usava um pesado carimbo, ruidosamente. Enfim, passava a imagem de estar muito concentrado em tarefas importantes e alheio ao que o rodeava. E pensava que o género humano (não confundir com Manuel Germano, como nos adverte o escritor Mário de Carvalho) tem muita dificuldade em descobrir o óbvio.
Passado um bocado, tudo voltou ao normal. Atento, Zezé reparou que as suas colegas de secção, duas ou três vezes durante o dia tinham ido às gavetas, tirado o sobrescrito azul e remirado, com olhares sonhadores, as respectivas flores.

Nas segundas-feiras seguintes, Zezé repetiu a operação. À terceira vez foi descoberto. No meio do ajuntamento galinhal ainda às voltas sobre quem seria o autor da coisa, a feia Lucinda emergiu das demais e, esticando o indicador direito na direcção do escriturário pescador, exclamou, num semi-guincho: “Foste tu!”
Todas as dez rodearam imediatamente o rapaz. E todas diziam: “Como é que não descobrimos logo? Só podia ser o grande Zezé”.
Rosália, a morena curvilínea da secção de controlo, avançou então de lábios franzidos e beijou Zezé na face, enquanto lhe acariciava o rosto e generosamente lhe comprimia o corpo com os fartos seios. E todas fizeram questão de seguir, embora mais moderadamente, o exemplo de Rosália.

Na segunda-feira seguinte, após desenhar as flores, Zezé, influenciado pela bela pescaria de enguias e carpas que tinha feito no Rio Alcabrichel, junto à foz, em Porto Novo, perto das Termas do Vimeiro (hoje um rio morto no troço final), e pelo belo tempo que fazia, acrescentou uns versos.
Estes:
A Primavera é um encanto
As aves andam num vaivém
As flores desabrocham no campo
Desabroche você também

A coisa deu brado...
A agitação, desta vez não se confinou às contempladas, pois estas, por entre sorrisos marotos e risinhos abafados, trataram de espalhar os dotes poéticos do Zezé por todo o pessoal do vetusto organismo corporativo, mais precisamente a Junta Nacional das Casas do Povo.
A D. Adelaide, chefe da Contabilidade, também leu a quadra, pois a descuidada Maria de Jesus tinha-se ausentado e deixado o papel em cima da secretária.
Oh!... Fez a severa e beata chefe de secção, talvez a única pessoa do organismo que não podia em caso algum ter acesso à quadra do Zezé.

Corada que nem um tomate, dirigiu-se de pronto, com o papel na mão, ao gabinete do secretário-geral. Passado cinco minutos, todos os chefes estavam reunidos. Passada meia-hora, Zezé foi chamado ao gabinete. Passados três minutos Zezé saiu, dirigiu-se à sua secretária e começou a arrumar os papéis. Quando vestiu o casaco já estava rodeado por todo o pessoal jovem do organismo, de caras consternadas.
- Foste suspenso?
- O processo disciplinar vai ser para despedimento?
- E agora?...
- Agora vou passar uns dias à pesca e depois logo se vê. - Disse o grande Zezé para os colegas, calmo, ou talvez apenas resignado.

No dia seguinte, quando Adelaide atravessou apressada a porta do organismo começou por estranhar o ramalhete de malmequeres que Alcina, a recepcionista, tinha na secretária. Espantou-se ao ver que o Sr. Demógenes, o escriturário do economato, tinha um malmequer na lapela do casaco. E quase teve um ataque, momentos depois, ao constatar que todas as mulheres, incluindo a sexagenária D. Madalena, tinham pequenas jarras com malmequeres nas secretárias. E que todos os homens tinham um exemplar das mesmas flores na lapela. Despiu o casaco e foi de imediato para o gabinete do secretário-geral. Os outros chefes já lá estavam.

Passada uma hora, o chefe de secção do Zezé entrou no seu gabinete envidraçado e chamou a Alice, a encarregada das dactilógrafas. Toda gente da sala parou o que estava a fazer e ficou como que suspensa, aguardando o regresso de Alice. Que não se demorou.

- Pessoal: - Disse, logo à saída do gabinete. - Vou agora expedir um telegrama para o Zezé, a dizer para se apresentar ao serviço já amanhã. A suspensão e o processo disciplinar ficaram sem efeito.
Nos minutos seguintes, o burburinho nas salas da sede da vetusta Junta Nacional das Casas do Povo foi enorme. Por entre abraços e beijos, uma sonora palavra sobressaía:

- Ganhámos!

Depois desse dia, o ambiente no vetusto organismo corporativo nunca mais foi o mesmo.

_________________________________________________________________

Nota:
O título desta historieta, parcialmente inspirada em factos reais, é o de uma célebre canção brasileira anti-ditadura, muito em voga nos finais dos anos 60 e princípios de 70 do século passado. É da autoria de Geraldo Vandré e tem como refrão: Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer.
E meus amigos, o grande Zezé e os colegas souberam fazer a hora.

Re: Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: sexta dez 13, 2013 5:23 pm
por DCautosport
JMET Escreveu:O jovem Zezé tinha chegado muito cedo ao emprego. E, sentado à secretária, sem nenhuma vontade de começar com o expediente, deixou-se ficar a recordar a grande pescaria da véspera. Mais de vinte sargos e, no final da pesca, um belo robalo de quase dois quilos. Aquela era sem dúvida a melhor pescaria que já tinha feito naquele ano de 1973.
Sorriu e deixou vaguear o pensamento. Dentro em pouco chegariam as suas colegas e começaria a labuta.

Foi então que…
Foi então que teve uma ideia. Foi buscar papel A4, cortou as folhas ao meio, e pôs-se a rabiscar numa delas uma circunferência de semi-círculos aos quais acrescentou um círculo no meio. Depois fez um risco vertical. Olhou os rabiscos e considerou que sem dúvida representavam uma flor. Acrescentou o desenho simplificado de uma folha ao rabisco que representava o caule da flor e considerou o trabalho completo.
Depois, repetiu o mesmo desenho nove vezes. De seguida, foi buscar uns sobrescritos A5 azuis que por lá havia e ensacou os desenhos das flores. Por fim, foi colocar os envelopes nas secretárias das colegas solteiras. Quatro na sua sala de trabalho e os restantes em secretárias de outras secções. Após isto, saiu para tomar um café.

Quando regressou, Zezé não estranhou o rebuliço que reinava na secção. Sentou-se e apreciou o que parecia serem galinhas num galinheiro. Dez jovens mulheres, falavam quase todas ao mesmo tempo, com envelopes azuis nas mãos e mandando palpites sobre o autor da gentil brincadeira.
“Foi o Antero”, dizia a Inês.”Não, só pode ter sido o Diogo”, dizia Amélia. “Isto são coisas mas é do Ricardo”, alvitrou uma outra.

Enquanto isto, Zezé virava folhas e folhas de uma listagem, fazia anotações e, ciclicamente, usava um pesado carimbo, ruidosamente. Enfim, passava a imagem de estar muito concentrado em tarefas importantes e alheio ao que o rodeava. E pensava que o género humano (não confundir com Manuel Germano, como nos adverte o escritor Mário de Carvalho) tem muita dificuldade em descobrir o óbvio.
Passado um bocado, tudo voltou ao normal. Atento, Zezé reparou que as suas colegas de secção, duas ou três vezes durante o dia tinham ido às gavetas, tirado o sobrescrito azul e remirado, com olhares sonhadores, as respectivas flores.

Nas segundas-feiras seguintes, Zezé repetiu a operação. À terceira vez foi descoberto. No meio do ajuntamento galinhal ainda às voltas sobre quem seria o autor da coisa, a feia Lucinda emergiu das demais e, esticando o indicador direito na direcção do escriturário pescador, exclamou, num semi-guincho: “Foste tu!”
Todas as dez rodearam imediatamente o rapaz. E todas diziam: “Como é que não descobrimos logo? Só podia ser o grande Zezé”.
Rosália, a morena curvilínea da secção de controlo, avançou então de lábios franzidos e beijou Zezé na face, enquanto lhe acariciava o rosto e generosamente lhe comprimia o corpo com os fartos seios. E todas fizeram questão de seguir, embora mais moderadamente, o exemplo de Rosália.

Na segunda-feira seguinte, após desenhar as flores, Zezé, influenciado pela bela pescaria de enguias e carpas que tinha feito no Rio Alcabrichel, junto à foz, em Porto Novo, perto das Termas do Vimeiro (hoje um rio morto no troço final), e pelo belo tempo que fazia, acrescentou uns versos.
Estes:
A Primavera é um encanto
As aves andam num vaivém
As flores desabrocham no campo
Desabroche você também

A coisa deu brado...
A agitação, desta vez não se confinou às contempladas, pois estas, por entre sorrisos marotos e risinhos abafados, trataram de espalhar os dotes poéticos do Zezé por todo o pessoal do vetusto organismo corporativo, mais precisamente a Junta Nacional das Casas do Povo.
A D. Adelaide, chefe da Contabilidade, também leu a quadra, pois a descuidada Maria de Jesus tinha-se ausentado e deixado o papel em cima da secretária.
Oh!... Fez a severa e beata chefe de secção, talvez a única pessoa do organismo que não podia em caso algum ter acesso à quadra do Zezé.

Corada que nem um tomate, dirigiu-se de pronto, com o papel na mão, ao gabinete do secretário-geral. Passado cinco minutos, todos os chefes estavam reunidos. Passada meia-hora, Zezé foi chamado ao gabinete. Passados três minutos Zezé saiu, dirigiu-se à sua secretária e começou a arrumar os papéis. Quando vestiu o casaco já estava rodeado por todo o pessoal jovem do organismo, de caras consternadas.
- Foste suspenso?
- O processo disciplinar vai ser para despedimento?
- E agora?...
- Agora vou passar uns dias à pesca e depois logo se vê. - Disse o grande Zezé para os colegas, calmo, ou talvez apenas resignado.

No dia seguinte, quando Adelaide atravessou apressada a porta do organismo começou por estranhar o ramalhete de malmequeres que Alcina, a recepcionista, tinha na secretária. Espantou-se ao ver que o Sr. Demógenes, o escriturário do economato, tinha um malmequer na lapela do casaco. E quase teve um ataque, momentos depois, ao constatar que todas as mulheres, incluindo a sexagenária D. Madalena, tinham pequenas jarras com malmequeres nas secretárias. E que todos os homens tinham um exemplar das mesmas flores na lapela. Despiu o casaco e foi de imediato para o gabinete do secretário-geral. Os outros chefes já lá estavam.

Passada uma hora, o chefe de secção do Zezé entrou no seu gabinete envidraçado e chamou a Alice, a encarregada das dactilógrafas. Toda gente da sala parou o que estava a fazer e ficou como que suspensa, aguardando o regresso de Alice. Que não se demorou.

- Pessoal: - Disse, logo à saída do gabinete. - Vou agora expedir um telegrama para o Zezé, a dizer para se apresentar ao serviço já amanhã. A suspensão e o processo disciplinar ficaram sem efeito.
Nos minutos seguintes, o burburinho nas salas da sede da vetusta Junta Nacional das Casas do Povo foi enorme. Por entre abraços e beijos, uma sonora palavra sobressaía:

- Ganhámos!

Depois desse dia, o ambiente no vetusto organismo corporativo nunca mais foi o mesmo.

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Nota:
O título desta historieta, parcialmente inspirada em factos reais, é o de uma célebre canção brasileira anti-ditadura, muito em voga nos finais dos anos 60 e princípios de 70 do século passado. É da autoria de Geraldo Vandré e tem como refrão: Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer.
E meus amigos, o grande Zezé e os colegas souberam fazer a hora.
=D> =D> =D>

Re: Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: sexta dez 13, 2013 8:02 pm
por Beto_Manja
Boas,

Mais uma belíssima história, parabéns.
Dificil de perceber a barreira entre o fictício e o real, pergunto-me se o amigo fará, de alguma forma, parte da história :hummm:
Obrigado pela partilha. :fixe:

Cumprimentos,
Roberto

Re: Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: sexta dez 13, 2013 9:10 pm
por ffgsoares
Muito engraçada a estória, e se algo ela tem de real é tão só o exaltar a liberdade! =D> =D> =D>

:fixe: :fixe:

Re: Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: domingo dez 15, 2013 2:54 pm
por Trophy_Master
gostei bastante =D> =D>

Re: Pra não dizer que não falei das flores

Enviado: domingo dez 15, 2013 6:40 pm
por TALIBAN
Boas pescarias.

Realmente é bonito de se ler, mas hoje cada vez menos se vêem esses valores.

Abraço.

Braga